13/05/2025 – Por Andrielly Gutierres*
O Supremo Tribunal Federal retirou de pauta o julgamento do Tema 1218 de repercussão geral (início do julgamento estava marcado para 09 de maio, no Plenário Virtual) mas a relevância e a urgência dessa discussão permanecem intactas para a educação pública brasileira. Em jogo está a definição da tese sobre se é possível a adoção do piso nacional estipulado pela Lei Federal nº 11.738/2008 como base para o vencimento inicial da carreira do magistério da Educação Básica estadual, com reflexos nos demais níveis, faixas e classes da carreira escalonada.
Trata-se de uma questão complexa, que vai muito além de meros cálculos aritméticos ou debate financeiro. Está em jogo a própria concepção das carreiras públicas no âmbito da educação: será o piso salarial nacional apenas um valor mínimo isolado ou ele serve de alicerce para toda a estrutura remuneratória dos docentes nos estados e municípios?
Entendendo o caso concreto: origem do Tema 1218 e o julgamento virtual no STF
O Tema 1218 de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal surgiu a partir do Recurso Extraordinário nº 1.326.541/SP, interposto pelo Estado de São Paulo. O caso concreto envolve uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que determinou que o governo estadual deveria reajustar não apenas os salários iniciais dos professores da rede pública para se adequar ao piso nacional previsto na Lei nº 11.738/2008, mas também aplicar reflexos desse reajuste para os demais níveis, faixas e classes da carreira docente.
Em resumo, o TJ-SP entendeu que, ao atualizar o vencimento inicial para atender ao piso nacional, o governo estadual estaria obrigado a repercutir proporcionalmente esse aumento em toda a estrutura da carreira, evitando o chamado achatamento salarial — situação em que professores em final de carreira recebem salários muito próximos daqueles em que estão ingressando.
O governo paulista recorreu ao STF, alegando que a aplicação obrigatória desses reflexos geraria um impacto financeiro insustentável, violando a autonomia administrativa e orçamentária do Estado. Em outras palavras, o Estado argumenta que a obrigação legal seria apenas atualizar o salário inicial para atender ao piso nacional, não havendo necessidade de reestruturar toda a matriz remuneratória acima dele. Assim, no Recurso Extraordinário, discute-se, à luz dos artigos 2º, 18, 37, X e XIII, e 169, § 1º, I e II, da Constituição Federal, a constitucionalidade ou não da decisão judicial que concedeu a equiparação do salário-base do professor da educação básica do Estado de São Paulo ao piso nacional da categoria, estabelecido pela Lei 11.738/2008, com incidência escalonada nas diversas faixas, níveis e classes.
O STF entendeu que haveria repercussão geral na problemática apresentada no caso concreto. Com isso, a decisão que será tomada nesse caso, sob relatoria do Ministro Cristiano Zanin, terá impacto nacional: servirá de orientação obrigatória para todos os tribunais do país e para a administração pública de estados e municípios, que lidam com o enquadramento dos pisos salariais na estrutura de suas carreiras docentes.
O processo já teve Parecer da Procuradoria-Geral da República do Ministério Público Federal, o qual foi no sentido de negar provimento ao RE do Estado de São Paulo, com a fixação da seguinte tese: “É constitucional a opção legislativa de adoção do piso nacional do magistério para preservar o escalonamento automático dos níveis, faixas e classes da profissão, uma vez que a observância do vencimento-base é critério legítimo para manter a organização do plano de carreira e não constitui hipótese de indexação, por se manter dentro da mesma estrutura ocupacional”.
Quanto ao formato de julgamento, sob reclames de boa parte das entidades sindicais do magistério, a sessão estava prevista para acontecer na modalidade do Plenário Virtual. Com a retirada de pauta, o julgamento foi adiado, mas não se tem notícia de alteração de formato, até então. Assim, quando retomado, o julgamento deve seguir na mesma modalidade, salvo alteração futura.
O Plenário Virtual é uma modalidade de julgamento prevista no regimento interno do Supremo Tribunal Federal para acelerar a deliberação de temas que podem ser apreciados diretamente pelos ministros no ambiente eletrônico. Nesse formato, o relator disponibiliza o voto no sistema eletrônico, e os demais ministros têm um prazo específico (geralmente de sete dias) para incluírem seus votos, concordando, divergindo ou apresentando fundamentações próprias. Não há, nesse formato, debate presencial nem transmissão ao vivo. Caso algum ministro peça destaque — ou seja, solicite que o caso seja retirado do julgamento virtual para análise em sessão presencial —, o processo é automaticamente deslocado para o plenário físico, com nova marcação de sessão, garantindo maior espaço para debate direto entre os ministros e sociedade civil/partes interessadas.
Mesmo com a retirada momentânea de pauta, as discussões em torno do Tema 1218 precisam continuar a ser acompanhadas de perto por entidades sindicais e especialistas, a fim de que a educação pública possa acompanhar um julgamento transparente, cuidadoso e sintonizado com a complexidade do impacto social e jurídico em jogo.
Precedentes: Tema Repetitivo 911 (STJ) e Suspensão de Liminar 1149 (STF)
O debate sobre os reflexos do piso salarial do magistério nas demais faixas da carreira não é novidade no Judiciário, inclusive nas Cortes Superiores.
No Tema Repetitivo 911, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou se os dispositivos da Lei nº 11.738/2008 autorizariam a aplicação automática do piso a todas as classes e níveis da carreira do magistério, inclusive quanto a vantagens como adicionais, gratificações e anuênios — mesmo sem lei estadual específica. A Corte concluiu que, embora o artigo 2º, §1º, da Lei do Piso determine que o vencimento inicial da carreira não pode ser inferior ao valor nacionalmente fixado, não há previsão de que esse piso repercuta automaticamente em toda a estrutura da carreira ou nas demais parcelas remuneratórias, salvo se houver norma local expressa nesse sentido.
Essa decisão foi publicada em dezembro de 2016, mas sua eficácia acabou sendo limitada com o surgimento do Tema 1218 no STF, que trata justamente da amplitude desses reflexos na carreira docente.
A controvérsia em torno do alcance do piso nacional do magistério ganhou contornos relevantes já outra vez no Estado de São Paulo, a partir da Ação Civil Pública nº 1012025-73.2017.8.26.0053, promovida pelo Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP). Nessa ação, o Judiciário paulista determinou que o piso nacional deveria ser adotado como salário base dos profissionais do magistério, incorporando valores anteriormente pagos como abono, com repercussão sobre a carreira e demais vantagens incorporáveis. Embora a sentença tenha reconhecido o direito à incorporação e à repercussão sobre vantagens, a questão da repercussão nas diferentes faixas da carreira ainda foi tratada com reservas, o que levou a recursos das partes e à judicialização em diversas instâncias.
A discussão alcançou o STF por meio da Suspensão de Liminar (SL) 1149, requerida pela Procuradoria do Estado de São Paulo. A liminar foi inicialmente concedida pela Ministra Cármen Lúcia e posteriormente confirmada pelo Plenário do Supremo. Na decisão, a Ministra advertiu que, embora fosse legítimo corrigir salários inferiores ao piso, não seria juridicamente aceitável aplicar automaticamente o reajuste a toda a carreira, sem respaldo em lei específica. Em sua avaliação preliminar, uma repercussão linear comprometeria o equilíbrio fiscal dos entes federativos e violaria o princípio federativo, transformando o piso nacional — de natureza mínima — em um reajuste geral anual do magistério, independentemente das condições financeiras dos estados e municípios.
Esse entendimento, entretanto, permanece sob análise, pois o processo paulista foi sobrestado, e aguarda uma definição vinculante do Supremo sobre a controvérsia a partir do julgamento do Tema 1218.
A natureza jurídica do piso e a lógica das carreiras
A Lei nº 11.738/2008 fixou um piso salarial nacional para os professores da educação básica com jornada de até 40 horas semanais, estabelecendo claramente, em seu artigo 2º, §1º, que este piso deve ser entendido como vencimento inicial da carreira. Ou seja, trata-se do valor mínimo pago ao professor no início da carreira, sobre o qual devem incidir as progressões por tempo de serviço, titulação, desempenho e demais critérios previstos nos planos locais.
Entretanto, estados e municípios frequentemente têm adotado interpretações restritivas, alegando que o piso deve ser entendido apenas como um parâmetro isolado, descolado das estruturas escalonadas de carreira. Essa interpretação, se acolhida pelo STF, abre a porta para uma situação perigosa: o achatamento das carreiras educacionais, com professores mais experientes, titulados e com anos de serviço recebendo valores praticamente equivalentes ao piso inicial, esvaziando completamente os incentivos à progressão funcional.
O impacto jurídico da decisão do STF e o direito constitucional a uma carreira estruturada e valorizada
O cerne jurídico do Tema 1218 é, portanto, se o piso nacional deve ou não produzir reflexos obrigatórios nas demais classes, níveis e faixas da carreira, de modo que as estruturas remuneratórias locais preservem coerência interna, com respeito às diferenças legítimas entre os estágios da carreira.
Do ponto de vista constitucional, a valorização dos profissionais da educação é um mandamento expresso no artigo 206, inciso VIII, da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006. Esse dispositivo determina que a valorização do magistério deve ocorrer na forma de planos de carreira estruturados, garantindo remuneração compatível, condições de trabalho adequadas, formação continuada e reconhecimento por mérito e tempo de serviço. A recente Lei Federal nº 14.817/2024 dá concretude a esse preceito constitucional ao estabelecer diretrizes nacionais para os planos de carreira da educação básica pública, reafirmando que não basta apenas cumprir pisos salariais isolados: é necessário construir carreiras capazes de oferecer progressão funcional, incentivo à qualificação e perspectiva de crescimento profissional.
Entre as diretrizes fixadas pela recente lei estão a estruturação das carreiras por classes e níveis, o reconhecimento de titulações acadêmicas e de formações adicionais, a adoção de critérios objetivos de progressão e promoção, e a obrigatoriedade de avaliação periódica de desempenho. A Lei nº 14.817 reforça que os planos de carreira não podem ser tratados como peças acessórias, mas como instrumentos centrais para garantir a efetiva valorização dos profissionais da educação.
É nesse contexto que se insere a relevância da decisão que será proferida pelo STF no bojo do Tema 1218. Eventual decisão que desvincule o piso nacional do vencimento inicial ou que não assegure reflexos coerentes nas faixas superiores da carreira contraria frontalmente a lógica da valorização prevista na Constituição e materializada pela Lei nº 14.817/2024.
A decisão do STF não enfrentará apenas aspectos remuneratórios: ela toca no próprio conceito federativo de piso nacional. Permitir que os entes federados adotem o piso apenas no ponto de entrada, sem que ele reorganize minimamente as tabelas salariais superiores, é esvaziar o sentido nacional dessa política pública, transformando-a em um mero patamar formal, sem consequências práticas.
Ademais, eventual interpretação que desvincule o piso nacional do vencimento inicial da carreira pode, ainda, contrariar o julgamento do próprio STF na ADI nº 4167, julgamento no qual a Corte já afirmou a constitucionalidade do piso nacional como vencimento inicial e reconheceu sua função de alicerce remuneratório, e não de teto.
Conclusão: por que defender a vinculação do piso à carreira
A decisão do STF no Tema 1218 será histórica, sem dúvidas. Após retomada da pauta de julgamento, caso a Corte opte por desvincular o piso nacional da lógica interna das carreiras, abrirá um perigoso precedente de desvalorização institucional do magistério, legitimando carreiras achatadas e esvaziadas. Por outro lado, reafirmar a natureza do piso como base de cálculo para toda a estrutura remuneratória significa fortalecer os planos de carreira, reafirmar o compromisso constitucional com a educação pública de qualidade e promover um sistema educacional capaz de atrair, reter e valorizar seus profissionais.
Trata-se, portanto, de uma decisão que não pode ser vista apenas sob a ótica do impacto orçamentário imediato, mas deve considerar os efeitos estruturais e sistêmicos sobre a qualidade do serviço público educacional.
Com a retirada de pauta do julgamento, abre-se uma importante oportunidade para que o Supremo Tribunal Federal reavalie o formato de deliberação do Tema 1218, transferindo-o para o plenário físico, onde será possível assegurar um debate mais aprofundado e acessível à sociedade. Ademais, em um contexto onde o Ministro Relator, em decisão recente, inadmitiu a participação de várias entidades nacionais de defesa do magistério público como amicus curiae, a exemplo da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), a retirada de pauta é uma importante oportunidade para reconsiderar tal decisão, garantindo que as vozes institucionais representativas dos professores e professoras sejam ouvidas formalmente no processo. Essa participação não apenas enriquece o debate jurídico, mas também fortalece o princípio da paridade de armas, permitindo que argumentos técnicos, sociais e econômicos dos/as trabalhadores/as sejam adequadamente contrapostos às posições governamentais já presentes no processo.
Enfim, seja no plenário físico ou virtual, a advocacia especializada, os gestores públicos e os/as profissionais da educação devem acompanhar atentamente este julgamento, pois seus efeitos moldarão o futuro das carreiras docentes no Brasil. Não esqueçamos: defender o binômio piso-carreira é também uma resposta à importante pergunta: que tipo de educação nós queremos?
*Advogada do Estevão & Pinheiro Advogados Associados, como foco em Direito Administrativo e defesa de servidores públicos.