Por Arthur Sales*
Em razão da pandemia do novo Coronavírus e da exigência do isolamento social, o Conselho Nacional de Justiça, através da Portaria 61/2020, permitiu a realização de sessões de julgamento e audiências telepresenciais por todos os Tribunais. As audiências realizadas dessa maneira, em tese, têm valor jurídico equivalente ao das audiências presenciais. Além disso, as audiências devem ser realizadas por meio da Plataforma Emergencial de Videoconferência para Atos Processuais. Diante desse contexto, tendo em vista a realidade de desigualdade socioeconômica da sociedade brasileira, pergunta-se: seria tal medida atentatória ao acesso à justiça?
Primeiramente, prudente mencionar que o acesso à justiça, conceito amplamente estudado pelo jurista italiano Mario Cappelletti, consubstancia-se na possibilidade de o(a) cidadão(ã) ter seu litígio apreciado pelo Estado. Sem dúvidas, em lides nas quais as partes estejam comprovadamente em proximidade de condições, dispondo de recursos socioeconômicos que lhes dão suporte suficiente, tal medida, qual seja, a realização de audiências online, não pode ser descartada uma vez que ela se mostra uma saída prática e efetiva como forma de resolução de conflito.
Outra é a realidade da maioria da população brasileira. Segundo dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), um(a) em cada quatro brasileiros(as) não dispõe de acesso à internet, em números totais isso representa 46 milhões de pessoas que não acessam a rede. A exclusão é maior entre pessoas que vivem nas áreas rurais, onde a porcentagem dos que não têm acesso a internet chega a 32%. No que diz respeito às regiões Norte e Nordeste, o percentual de quem não tem acesso à internet é de 35,3% e 36% respectivamente, e entre os domicílios da classe trabalhadora, é de 21%. Com isso, evidencia-se que, num contexto de audiências telepresenciais, as pessoas mais vulneráveis economicamente, encontrando limitações quanto ao mínimo necessário para participação das audiências, estarão em larga desvantagem quando comparadas às pessoas de outras classes sociais e regiões mais abastadas.
Apenas mais um obstáculo frente aos tantos já existentes. Sabe-se que a realidade brasileira é plural e, sobretudo, desigual. A população pobre, ao tentar ter seu litígio solucionado, já enfrenta obstáculos que vão desde a impossibilidade de contratação de advogado(a) com expertise na sua demanda, até a própria não paridade de armas processuais em razão das diferenças econômicas com a parte adversa.
Nesse sentido, a instalação de audiências telepresenciais contrapõe-se ao princípio da isonomia que defende o tratamento e condições igualitárias para o exercício do direito. Ademais, a Constituição Federal assegura além da igualdade legal/formal (art. 5º, caput), a inafastabilidade da jurisdição (inciso XXXV, art. 5º), que se caracteriza pela impossibilidade do non liquet, ou seja, inexistência de vedação à tutela jurisdicional.
Importante destacar, ainda, que no âmbito do Direito Processual Trabalhista, há o princípio da oralidade, caracterizando-se como um direito fundamental do diálogo processual, valorizando a comunicação entre partes e juízo. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), nos artigos 840 e 850, por exemplo, assegura a defesa verbal. Assim, o juiz pode observar não só os fatos mencionados pelas partes, como também, a produção de prova testemunhal, depoimentos pessoais, periciais, entre outros, que influenciam na percepção da lide pelo magistrado e contribuem para o seu livre convencimento.
O princípio da oralidade garante ao juiz uma visão mais clara do direcionamento do processo e segurança jurídica na análise probatória dos elementos levados ao processo pelas partes. Logo, no contexto de audiências telepresenciais, a oralidade das partes, bem como a percepção do juiz diante dos fatos processuais pode ser mitigada e, por sua vez, prejudicada pela comunicação virtual.
Não fora observada, também, a falta de estrutura dos Tribunais Regionais do Trabalho, uma vez que a práxis forense nos apresenta, muitas vezes, varas com déficit de servidores, juízes e materiais de informática. Nesse sentido, deve-se observar a possível onerosidade que tais medidas podem acarretar, uma vez que audiências telepresenciais dependem de instrumentos tecnológicos e de informática que não estão implementados integralmente nas Varas. Prova disso é que, inobstante a existência da portaria e a sugestão pela realização de audiências presenciais, os Tribunais não estão aderindo à medida supramencionada, em virtude da incipiente estrutura física e humana para implementação.
A partir dos dados destacados, os quais nos informam que o acesso à rede mundial de computadores ou a itens de informática é uma realidade minoritária na nossa sociedade, extremamente marcada por diferenças regionais, entende-se que a alternativa de audiências telepresenciais acaba por ferir frontalmente o acesso à justiça.
Assim sendo, diante do contexto de pandemia e de necessidade do isolamento social, faz-se imprescindível a suspensão de prazos processuais e de audiências, pois, só assim, a tutela jurisdicional será efetiva, integral e satisfatória. Desse modo, agiu corretamente o CNJ ao emitir resolução – nº 318, publicada no dia 07 de maio de 2020 – que suspende os prazos processuais nos estados que decretassem lockdown (ou seja, medidas mais rígidas de isolamento social). Todavia, é importante que processos de caráter urgente (tutelas antecipadas) sejam decididos remotamente pelos(as) magistrados(as), sob pena de prejuízos aos(às) jurisdicionados(as).
Por outro lado, passado o período de pandemia, para que haja uma agilização desses processos com prazos e audiências suspensos, é importante que os Tribunais realizem mutirões e mobilizem toda sua estrutura humana e física para que os processos voltem ao seu curso normal e, nesse sentido, seja o acesso à justiça princípio basilar e informador de todas as decisões administrativas que afetem o Poder Judiciário.
*Arthur Sales é acadêmico de Direito da UFPE e estagiário do Estevão e Pinheiro Advogados Associados.