Por André Barreto**
Tem tomado notoriedade, pelo menos desde o ano de 2022, como o Supremo Tribunal Federal vem sistematicamente reformando decisões do Judiciário Trabalhista de maneira a afastar dessa o seu papel de defesa dos direitos sociais dos trabalhadores brasileiros, principalmente em casos cujo o objeto trata do reconhecimento de vínculo empregatício de obreiros contratados de modo fraudulento como “empresários” prestadores de serviços (com a intermediação de pessoa jurídica) ou em atividades tradicionalmente tidas como de trabalho autônomo por profissionais liberais. Tal atuação do STF na reforma de casos trabalhistas envolvendo o contrato de emprego e pejotização no setor de serviços, no último período, tem se dado principalmente por meio de centenas de decisões de reclamações constitucionais.
Dentre as principais situações concretas de trabalho que esses casos tratam, tem-se o trabalho na advocacia, o trabalho médico em hospitais, motoristas de cargas, trabalho na corretagem de imóveis, representantes comerciais, trabalho em franquias, motoristas de aplicativo, dentre outros. Muitas delas são situadas em ramos produtivos dos serviços que vem passando nos últimos anos por mudanças estruturais na própria forma da atividade econômica, através da mercantilização do serviço prestado, e consequentemente no modo como se desenvolvem as suas relações de trabalho. É justamente nesses setores que emerge como um problema concreto a negação, ou pelo menos a limitação, da aplicação dos direitos trabalhistas sobre o labor, na medida em que a pejotização ou meros vínculos jurídico-civis de prestação de serviços passam a ser a regra, tornando as relações trabalhistas cada vez menos reguladas pelas normas do Direito do Trabalho. Porém, esse problema do esvaziamento ou limitação do âmbito de aplicação dos direitos trabalhistas tende a se expandir para outros ramos produtivos, vindo a ser geral em todo mercado de força de trabalho no país, tornando a aplicação do regime jurídico da CLT opcional ou facultativo segundo a “livre escolha” do “empregador” (nas próprias palavras de ministros do STF).
Tal situação aprofundou-se no mês de abril deste ano, quando a Corte Suprema afetou com repercussão geral o ARE nº 1.532.603 (Tema 1.389), a fim de unificar a jurisprudência nacional e tornar vinculativas as teses jurídicas a serem firmadas sobre: i) a competência da Justiça do Trabalho para julgar as causas em que se discute a fraude no contrato civil de prestação de serviços; ii) a licitude da contratação de trabalhador autônomo ou pessoa jurídica para a prestação de serviços, a partir do entendimento jurídico firmado na ADPF nº 324; e iii) o ônus da prova relacionado à alegação de fraude na contratação civil. Ainda no dia 14 de abril, o Min. Gilmar Mendes, relator do caso, determinou a suspensão nacional da tramitação de todos os processos trabalhistas que tratem do referido Tema, o reconhecimento de vínculo empregatício envolvendo fraude na pejotização do trabalho ou contratação de trabalho autônomo.
Em síntese, o quadro político-jurídico que temos é o de o STF estar sistematicamente nos últimos anos a limitar ou mesmo afastar do Judiciário Trabalhista o seu papel de defesa dos direitos sociais dos trabalhadores brasileiros, contratados, muitas vezes, na tônica do mercado de trabalho de avanço da precarização e informalidade. E tal competência da Justiça do Trabalho, posta em xeque, de apreciação da existência ou não de fraude na contratação de mão de obra, a fim de mascarar o que viria a ser um contrato-realidade de emprego, vem a ser uma das atribuições centrais desse ramo judiciário, exercida há muitas décadas – tanto que na Reforma do Judiciário de 2004 (EC nº 45), foi dada redação ao art. 114, I, da Constituição, para que passasse a ser competência da Justiça Laboral não apenas casos que discutissem vínculo empregatício, mas toda e qualquer forma de relação de trabalho.
E qual o papel da Advocacia brasileira diante desse processo de esvaziamento do Direito do Trabalho e afronta à competência constitucional da Justiça Laboral? A Advocacia foi elevada pela Constituição Federal de 1988 (art. 133) a ser um dos sujeitos integrantes do sistema de justiça em nosso país, tendo por papel institucional a defesa de sua integridade e do seu funcionamento regular. Já no artigo 44 do Estatuto da Advocacia e da OAB, é prevista como finalidade da OAB defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos e a justiça social. Que seja, todo membro da advocacia regularmente inscrito na OAB tem o dever precípuo de atuar na defesa da Constituição Federal e da ordem democrática, devendo agir em face de qualquer intento de afronta aos mesmos, não sendo diferente em relação à própria OAB.
Considerando que o Direito do Trabalho tem o seu núcleo essencial de direitos protegidos no texto constitucional, ao longo dos direitos individuais e coletivos trabalhistas previstos nos arts. 7º, 8º e 9º, verdadeiras espécies de direitos humanos sociais e econômicos, a defesa de sua regular eficácia e efetividade vem a ser também missão institucional da Advocacia brasileira e da OAB, na medida que são instrumentos fundamentais de promoção da justiça social. A consecução do Estado Democrático de Direito não passa apenas pela garantia das liberdades fundamentais, mas também pela observância e concretização dos direitos sociais, econômicos culturais e ambientais, o que impõe um papel central ao Direito do Trabalho e seus operadores no sistema de justiça para a construção do nosso Estado e de nossa democracia.
Por conseguinte, é tarefa também da Advocacia brasileira, com destaque à Advocacia Trabalhista, ser sujeito no processo de resistência e enfrentamento ao desmonte do Direito do Trabalho empreendido nos últimos anos, diante de um mundo do trabalho brasileiro devastado e de relações laborais cada vez menos reguladas pelas normas do Direito do Trabalho, cujo principal e atual artífice do esvaziamento da importância desse ramo jurídico tem sido o Supremo Tribunal Federal. Sem sombra de dúvidas, o que o STF tem tentado na construção de jurisprudência com os julgamentos das reclamações constitucionais sobre pejotização do trabalho e agora com o julgamento de constitucionalidade concentrado no Tema 1.389 é fazer uma nova reforma trabalhista, muito mais radical do que a realizada em 2017, por meio da Lei 13.467/2017, e sem a devida discussão com a sociedade brasileira.
Resistir é preciso e junto com outras entidades da sociedade civil organizada. Afinal, a forma jurídica do emprego, que compreende a regulação jurídica das relações de trabalho através do contrato de emprego, ainda é hoje o que se tem de mais garantidor de direitos sociais básicos à classe trabalhadora e melhor instrumento de promover o equilíbrio e diálogo na relação capital – trabalho, portanto, o que se tem de mais avançado do ponto de vista civilizacional para as relações de trabalho.
*texto originalmente publicado no site “Cunsultor Jurídico” (Conjur) no dia 21 de maio de 2025.
** Advogado trabalhista e sindical, sócio do Estevão & Pinheiro Advogados Associados. Conselheiro Seccional Titular da OAB-PE (2025-2027). Mestre em Direito do Trabalho pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD-UFPE). Pesquisador acadêmico vinculado ao Grupo de Pesquisa “Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica” do PPGD-UFPE. E-mail: andre@estevaoepinheiro.adv.br.