Por Lara Lorena Ferreira*
É do excelente texto da coluna de Djamila Ribeiro para o jornal Folha de S. Paulo “Doméstica idosa que morreu no Rio cuidava da patroa contagiada pelo coronavírus”, de 19 de março de 2020, que começa minha reflexão.
É muito significativo que o primeiro caso de morte confirmada por coronavírus no Rio de Janeiro, e um dos primeiros do Brasil, tenha se apresentado oficialmente como uma empregada doméstica.
Segundo a reportagem que noticiou o caso, a empregada cuidava da patroa que chegou doente da Itália e não informou sua doença. Na matéria jornalística, a trabalhadora era empregada há duas décadas da família, que morava no Leblon, Rio de Janeiro (RJ).
:: Quais os direitos dos trabalhadores diante da pandemia do coronavírus? ::
E apenas assim foi apresentada na notícia: como doméstica, sem nome, apenas apontada sua posição social. O texto da colunista nos chama a atenção de que nem mesmo o falecimento da trabalhadora, a senhora Cleonice Gonçalves, teve o condão de humanizá-la na reportagem. Isso é muito emblemático no país em que vivemos.
A partir desse caso podemos refletir se deve ser responsabilidade do empregador o adoecimento dos trabalhadores pela covid-19.
Neste sentido, tentou o governo federal, por meio da MP 927 – que dispôs sobre as medidas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente do coronavírus – no seu artigo 29, não caracterizar o adoecimento por contaminação pelo coronavírus como doença ocupacional, salvo em caso de comprovação do nexo causal, apesar da exposição dos que estão trabalhando ao risco de contraírem o vírus.
De início, esse primeiro caso já expõe de cara a vilania do artigo 29 da MP 927, proposto pelo governo federal: como não reconhecer a doença ocupacional no caso da trabalhadora doméstica? Qual a razoabilidade de exigir prova de nexo causal a essa classe de trabalhadoras? Ainda que contagiada no itinerário casa-trabalho-casa, permanece a causalidade ocupacional da doença.
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu sobre mais esse ataque aos direitos trabalhistas, lançado sob a forma de MP 927. O Plenário da Corte, em sessão de 29 de abril, suspendeu, enfim, a eficácia desse dispositivo, no julgamento de medida liminar em sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) ajuizadas contra a MP (ADI’s 6342, 6344, 6346, 6348, 6349, 6352, 6354).
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) refuta que a decisão traz grave ameaça aos empreendimentos, em razão do risco do negócio, pois colocam em xeque diversos fatores tributários, empresariais, financeiros, judiciais e geram alto perigo ao funcionamento das empresas.
Isto porque a doença ocupacional traz consigo como implicação o direito à garantia de emprego, emissão de CAT (Comunicado Acidente do Trabalho), consignação do FGTS do trabalhador no período de licença previdenciária, majoração do Fator Acidentário de Prevenção (FAP) da empresa, podendo gerar inclusive indenizações judiciais.
A imposição de comprovação de nexo causal aos profissionais da saúde e trabalhadores de unidades de saúde pública e privada é uma afronta à obviedade.
Mas a despeito da evidência do nexo causal a esses profissionais, não apenas eles podem ser acometidos de doença ocupacional pela covid-19: cuidadores, frentistas, trabalhadores do ramo de alimentação, de transporte, de telecomunicações, de serviços de limpeza e sanitários, de segurança, trabalhadores de serviços essenciais que estão expostos à contaminação em decorrência da exposição como empregado.
Como exemplo de enfrentamento em outros países, na Itália, o Instituto Nacional de Seguro de Acidentes de Trabalho (Instituto Nacional de Seguro contra Acidentes de Trabalho – INAIL) confirmou que as infecções por coronavírus de profissionais da saúde, ou outros funcionários do Serviço Nacional de Saúde (Servizio Sanitario Nazionale – SSN), bem como de qualquer outra unidade de saúde pública ou privada, são consideradas doenças ocupacionais.
O nexo de causalidade entre o trabalho e a infecção será assumido automaticamente, os casos da covid-19 adquiridos durante o trajeto para o trabalho ou para casa também são cobertos pelo INAIL.
Nesse momento, a luta pelo direito do trabalho é uma luta ressignificada, diretamente vindicada aos direitos humanos, em disputa aqui o direito fundamental à vida e à saúde, inclusive no ambiente de trabalho.
Diante deste panorama, resta às empresas reforçarem ainda mais o sistema de segurança e saúde, com os novos protocolos, a fim de resguardar a vida dos empregados. É o que a legislação trabalhista e a Constituição impõem sempre e não apenas em um momento de pandemia. É obrigação legal!
A tentativa do não reconhecimento do coronavírus como doença ocupacional foi apresentada na linha da atual política governamental brasileira, de completo compromisso com a classe empresarial, e desprezo com a classe trabalhadora. Mas, indo além, não somente aos direitos desses, mas à própria existência dos mesmos.
E apresentada ante uma pretensa necessidade de escolha entre a saúde e a economia, de tal forma que tenta convencer a sociedade, mesmo diante dessa tragédia aguda, da necessidade de se manter a agenda neoliberal, ainda que, mais uma vez, na contramão da história, onde o mundo parece pretender voltar-se a partir da pandemia para saídas econômicas de cunho nacionalista, em contraposição à globalização, ficando, mais uma vez, a política econômica brasileira, numa posição de completa solidão mundial.
:: “Brasil tem no presidente um inimigo mais perigoso que a covid-19”, diz Arthur Chioro ::
A propaganda pela necessidade de escolher entre a saúde e a economia é um falso dilema. Não há distinção entre salvar vidas e salvar a economia. Só é preciso aplicar políticas apropriadas. É preciso proteger as empresas, especialmente as pequenas e médias, para não falirem ou demitirem os empregados.
Em alguns países da Europa, por exemplo, o Estado paga uma parte dos salários dos trabalhadores para que eles não fiquem desempregados. Em vários países europeus, as pequenas empresas podem tomar empréstimos por muitos anos sem pagar juros.
No caso de indivíduos de baixa renda, eles devem receber apoio fiscal, seja pela entrega direta de recursos ou pelo pagamento de parte do salário, mesmo que não estejam trabalhando.
O trabalhador importa. E o momento impõe a revalorização do trabalhador, e não sua extinção. Não há economia sem o trabalhador.
E isso até os mais ignóbeis defensores da reabertura da economia – aqueles que de carreata circundam bairros nobres de nossas cidades, contrários ao isolamento – reconhecem, ainda que não nesses termos, ao reivindicar a volta da economia e, por conseguinte, o retorno dos trabalhadores a seus postos. Suas vidas dependem não da economia, mas dos trabalhadores que fazem dela a manutenção de seus privilégios.
*Lara Lorena Ferreira é advogada trabalhista e sindical, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e do Coletivo Nacional de Advogados de Servidores Públicos (CNASP).
Fonte: Brasil de Fato, São Paulo, 04 de Junho de 2020